Consulta prévia aos indígenas é assunto de reunião hoje em
Brasília entre o governo federal e os índios que paralisaram a obra de
Belo Monte nos últimos oito dias
Os indígenas impactados de maneira definitiva pelos projetos de
usinas hidrelétricas na Amazônia nunca foram consultados previamente, da
forma definida pela Constituição brasileira e pela Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é
signatário. Por esse motivo, o governo brasileiro responde a três
processos judiciais, movidos pelo Ministério Público Federal no Pará e
no Mato Grosso.
Nas ações, o MPF defende o direito de consulta dos povos indígenas
Arara, Juruna, Munduruku e também para os ribeirinhos dos rios Xingu,
Tapajós e Teles Pires. Uma quarta ação está em estudo, em defesa do
direito dos Kayabi, afetados pela usina de São Manoel e nunca
consultados. O licenciamento da usina está em andamento, mas chegou a
ser paralisado por não prever sequer estudos de impactos ambiental sobre
os indígenas.
Os índios que ocupavam um dos canteiros de obras da usina de Belo
Monte estão em Brasília hoje debatendo a reivindicação da consulta em
uma reunião com o governo federal. A Vice-procuradora-geral da
República, Deborah Duprat, acompanha a reunião, assim como a presidente
da Associação Brasileira de Antropologia, Carmen Rial.
Suspensões de segurança
Em todos os processos que move sobre a consulta, o MPF obteve
vitórias em favor dos indígenas, mas o governo recorreu e toca os
projetos com base em liminares e suspensões de segurança – instrumento
em que o presidente de um tribunal suspende decisões das instâncias
inferiores de forma solitária, sem julgamento em plenário. A suspensão
de segurança não analisa os argumentos debatidos na ação, apenas se uma
determinada decisão judicial afeta a ordem, a saúde, a segurança e a
economia públicas, deixando o debate sobre os motivos do processo para
depois.
Sobre o histórico de suspensões de decisões nos processos de usinas,
os desembargadores da 5ª Turma do TRF1, que julgou os casos de Belo
Monte e Teles Pires, lembraram que esse tipo de suspensão surgiu na lei
processual brasileira em 1964, durante o regime de exceção. “A lei é de
exceção e o Estado, hoje, é de direito. Portanto, a lei que criou a
figura excepcional de suspensão de segurança, rompendo com o devido
processo legal, é um diploma autoritário”, disseram em um acórdão.
Conflitos
Nos três rios que são objeto das ações do MPF pela consulta, o
governo brasileiro tem projetos de pelo menos 11 hidrelétricas em
estágios variados de construção e licenciamento. Belo Monte, o caso mais
emblemático, já acumula mais de 17 processos na Justiça Federal e
incontáveis conflitos com índios e trabalhadores. Foi palco de várias
ocupações por indígenas, as últimas reivindicando claramente o direito
da consulta prévia.
A maior parte dos indígenas que ocuparam Belo Monte por 17 dias
somente no último mês de maio vivem no rio Tapajós, afetados pelas
usinas de São Luiz do Tapajós, São Manoel e Teles Pires. São Luiz do
Tapajós é um dos grandes focos de conflito, mas não é o único. A usina
Teles Pires, já em estágio de construção, explodiu cachoeiras
consideradas território sagrado para os índios Munduruku. Eles nunca
foram consultados e por isso, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
em Brasília ordenou a paralisação da obra em agosto do ano passado. Mas a
decisão dos três desembargadores que analisaram o processo foi suspensa
por uma decisão monocrática do presidente do Tribunal, Mário César
Ribeiro. O processo continua tramitando.
No caso de São Luiz do Tapajós, todas as instâncias judiciais
reconheceram o direito à Consulta não só para os índios, como para os
ribeirinhos, que no rio Tapajós são conhecidos como beiradeiros. Em vez
de fazer as consultas, no entanto, o governo recorreu na Justiça e
montou uma operação da Força Nacional para garantir os estudos de
impacto dentro dos territórios indígenas, o que é um dos principais
motivos para a revolta dos Munduruku. Novamente, a Advocacia Geral da
União conseguiu suspender as decisões favoráveis aos índios, dessa vez
por meio de uma decisão monocrática do presidente do Superior Tribunal
de Justiça, Félix Fischer.
O primeiro caso do MPF sobre a consulta, iniciado em 2006, diz
respeito aos indígenas do Xingu, impactados pela usina hidrelétrica de
Belo Monte. A batalha judicial já completou sete anos. No começo do
processo, os advogados do governo alegavam que as consultas poderiam se
dar em qualquer etapa do licenciamento ambiental, que os estudos
poderiam prosseguir, que as licenças poderiam ser concedidas e depois a
consulta seria feita.
No meio do processo, o governo federal mudou sua argumentação e
passou a dizer que os indígenas do Xingu nem precisariam ser
consultados, porque a hidrelétrica não alagará terras indígenas. O TRF1
desconsiderou o argumento, já que a obrigação prevista na Convenção 169 é
para consultar povos afetados e que terão seus modos de vida
modificados, não necessariamente alagados. No caso do Xingu, o rio será
desviado para abastecer a usina: em vez de alagar, as terras indígenas
vão secar, o que pode ser impacto ainda mais grave.
A decisão favorável aos indígenas no caso de Belo Monte, que
paralisou a usina por dez dias em agosto de 2012, também foi suspensa
por uma decisão monocrática, do então presidente do Supremo Tribunal
Federal, Carlos Ayres Britto. Até agora, o plenário do STF não analisou a
questão.
O momento da consulta
Entre as suspensões de segurança concedidas ao governo federal por
Félix Fischer, Ayres Britto e Mário César Ribeiro existe uma
coincidência: nenhuma delas afirma que que a consulta não é necessária
ou não precisa ser feita, apenas permitem que o governo siga com
estudos, cronogramas e obras até que chegue a hora de se julgar o
direito da consulta. Para o MPF, o momento da consulta afeta
decisivamente a efetividade desse direito.
De acordo com a Convenção 169, a consulta é necessária em qualquer
projeto ou decisão de governo que vá afetar, modificar, de forma
permanente e irreversível, a vida de povos indígenas, tribais e
tradicionais. Para o MPF, deve ser aplicada a várias populações
amazônicas, não apenas indígenas. E deve ser feita antes de qualquer
decisão sobre o projeto.
Atualmente, o governo tenta convencer os indígenas do Tapajós e o
judiciário que a consulta pode ser feita depois dos Estudos de Impacto
Ambiental. Em argumentações nos processos judiciais, a AGU
contraditoriamente afirma que quer fazer a consulta, batizada de Diálogo
Tapajós, mas que não pode deixar de cumprir o cronograma de implantação
da usina – do qual os estudos de impacto são etapa inicial. Para a AGU,
para ser prévia, basta que a consulta seja feita antes da Licença
Prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente.
Para o MPF, isso equivale a tornar a consulta inválida, porque a
decisão de construir a usina foi tomada muito antes do Ibama entrar no
processo, quando concluído o inventário da bacia hidrográfica e
definidos os pontos para construção de hidrelétricas. “Se a obra já tem
até cronograma, como falar em consulta?”, questiona o procurador da
República Felício Pontes Jr, que acompanha os processos sobre o assunto.
Após o inventário da bacia hidrográfica existem dois momentos em que o
governo, em conjunto com empresários da construção civil e do setor
elétrico, decide realmente pela construção da usina, sem a participação
dos povos afetados. São as resoluções do Conselho Nacional de Política
Energética e da Agencia Nacional de Energia Elétrica que definem que a
obra será realizada. “Esses momentos tem que ser precedidos de consulta
aos povos afetados, ou então o Brasil estará violando o compromisso
assumido na Convenção 169”, explica o procurador Ubiratan Cazetta.
Fonte: MPF-PA
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